Por que vender jogos de graça?

Por que vender jogos de graça?

Existem uma série de razões para publicar os jogos da forma que é feita no Encho Indie Studio. Vamos conversar um pouco sobre isso.

@enchochagas

A gente precisa encontrar outras formas de capitalizar trampo independente. #indierpg #ttrpg #gamedesign #gamedev

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Produção artesanal

O Encho Indie Studio é um estúdio de jogos independente. Mas o que significa isso? Sou uma única pessoa, trabalhando sozinha para fazer tudo isso acontecer, e sem uma renda fixa (ou qualquer renda) para financiar esse trabalho. Não só preciso criar os jogos, mas também fazer toda a arte e diagramação do material, depois a divulgação do trabalho, vendas, e logística e entrega caso algum projeto envolva cópias físicas.

Normalmente estamos acostumados com a produção em um processo industrial, realizada por empresas grandes, com capital ativo, funcionários, etc. É preciso entender que esse modelo não precisa ser a única alternativa viável para a produção de qualquer coisa. Mais à frente vou explorar as razões do porquê é tão necessário manter os projetos do estúdio de forma artesanal, mas por hora apenas vamos deixar claras as diferenças práticas.

Eu já tive, no passado, alguns projetos muito bem sucedidos, como o PULSE. Um jogo com prêmio internacional, divulgado organicamente em sites como Jovem Nerd e matérias em grandes jornais. O jogo fez algum dinheiro, fui convidado para fazer lançamentos em lojas de vários estados… mas me rendeu um valor mensal inferior a um salário mínimo, se contar todos os meses que dediquei trabalhando nele.

E isso é, de longe, o meu jogo mais bem sucedido. Ou seja, pra ser viável comercialmente eu precisaria dar um jeito de fazer alguma coisa ainda mais comercial, e várias delas todo ano, para ver se atinjo um faturamento razoável. Fato é que, no mercado tradicional na forma como ele se apresenta hoje, é absolutamente impossível comercializar um projeto qualquer sem uma mínima estrutura industrial. E manter uma estrutura do tipo é algo caro, que me exigiria um rendimento mínimo mensal só para existir, além dos meus gastos pessoais, o que começa a interferir nas minhas decisões como desenvolvedor. Nem todo projeto será comercialmente viável. Esse é o dilema que absolutamente qualquer estúdio de jogos vive: a decisão entre fazer dinheiro ou fazer jogos inovadores ou simplesmente não comerciais, e sabendo que cada um deles precisa ser um sucesso esmagador ou, no primeiro lançamento mais ou menos, você quebra.

A minha resposta é simples: se fosse para fazer dinheiro, eu não trabalhava com jogos. Tive uma carreira ganhando muito bem como designer e programador. Se é pra trabalhar com jogos, então dinheiro não pode ser a motivação. Isso não é dizer que eu não vá fazer dinheiro, ou que adore esse masoquismo puritanista hiponga. Eu realmente acredito que é muito possível viver de jogos sem fazer quaisquer concessões. E o Encho Indie Studio é a minha tentativa mais atual de mostrar isso, e tentar mobilizar outros autores a fazê-lo também.

Jogos não comerciais

Hoje em dia ninguém consegue entender nenhuma produção como não comercial. A gente precisa de dinheiro pra viver, então fazer qualquer coisa que não gere dinheiro é desperdício de tempo. Ou para os afortunados que podem tomar tempo para o ócio, seja por terem um trabalho de menos horas que o pague muito bem ou uma vida privilegiada por qualquer outra razão, podem ter um trabalho como hobby. Bom… para mim fazer jogos não é um hobby. Aliás não é nem um trabalho, pra ser sincero. Eu tenho grandes expectativas para o papel dos jogos na nossa sociedade.

Mas fato é que, se o jogo precisa vender, ele precisa ser vendável. Ser vendável é algo fácil de determinar, e é diferente de ser bom. Na indústria temos essa falsa percepção de que obras quaisquer são melhores que outras por terem vendido mais, e vibramos quando uma obra que gostamos faz muito sucesso. É um conceito torto, ilusório. Eu não preciso me esforçar aqui. Certamente você saberá pontuar um jogo, um filme, uma música, que só você gosta. Todo mundo odeia, e ainda assim essa obra pode ter sido tanto fracasso quanto sucesso de vendas. O sucesso monetário não faz qualquer diferença na qualidade da obra, e certamente não fez à sua percepção. Você gostou, e mais ninguém. E será que, por você ser a única pessoa que gostou… essa obra então não deveria existir?

Nosso sistema de viabilização de projetos por sua viabilidade comercial não é uma garantia de que teremos sempre bons projetos. Muito pelo contrário. A maior certeza é que teremos mais e mais projetos parecidos, repetindo as mesmas conhecidas estratégias de sucesso. Benchmarking. E aquela sua obra que só você gostou provavelmente nunca seria produzida de novo.

Em linhas gerais, inovação, ao contrário do que todo startupeiro do expresso empreendedor vai te falar, não é comercialmente viável. É uma péssima estratégia comercial. E se dependemos de vendas, a gente não tem o luxo de falhar. Para inovar é crucial que exista a possibilidade do erro, do fracasso. Como afirmar que algo novo realmente funciona antes de ser apresentado? Se é realmente novo, como se sabe antes que a coisa funciona?

Para poder se afirmar como um produtor inovador, ou experimental, é preciso abraçar o direito de falhar. Para ser o melhor, eu preciso poder ser o pior. E é só errando zilhões de vezes que, ocasionalmente, vai sair um ou outro realmente bom. Ou ainda que nunca saia um bom, haverão experiências que serão de extrema valia para outro autores, que poderão aprender com meus erros e desenvolver suas próprias soluções. Uma comunidade de desenvolvimento não tem como ser considerada saudável enquanto é constituída por centenas de replicadores, se estapeando por direitos de patente e acusações de plágio enquanto nenhum possui uma ideia realmente nova. Mas se todos estão experimentando e trocando conhecimento, aí sim existem maiores possibilidades de obras únicas, significativas, porque não sou só eu e meu ego tentando encontrar o jogo perfeito: é o meu trabalho se alimentando dos erros de outros e sendo alimentado para o erro de outros.

A produção não comercial é fundamental para qualquer indústria criativa. No caso dos jogos, que nunca teve a chance de existir fora de um ambiente comercial, isso é uma necessária medida corretiva.

Vendas unitárias

Desde a invenção do sistema capitalista, essa é a forma como decidimos interpretar qualquer produção. Cria uma coisa, dá um valor a essa coisa, vende a coisa. É como compramos praticamente tudo que temos, usamos, consumimos. Mas definitivamente não é a única forma, ou sequer a melhor forma.

A popularização dos produtos digitais propôs uma grande disrupção nos nossos hábitos de consumo nos últimos anos. Afinal arquivos de computador são muito facilmente copiáveis, e de repente uma compra unitária pode atender a milhares de consumidores. Nasce o conceito da pirataria digital, de forma a inibir o compartilhamento gratuito entre pessoas e forçá-las a fazer mais compras. Eu não vou fazer nesse texto meu discursinho sobre acessibilidade e anti-pirataria, mas essa é sim uma razão fundamental para como viabilizo meus jogos. Se quiser saber mais, tem um episódio do meu podcast Encho de Papo que gravei com Tiago Junges, da Coisinha Verde, falando sobre isso.

Porém este mesmo fato também permite que outros modelos de venda sejam executados, já que você pode vender sem se preocupar com custos de produção. Isso permitiu grandes corporações a criar verdadeiros monstros multimídia, com possibilidades basicamente infinitas de comercializar conteúdo. E isso tem muito a ver com o tópico que já citei, sobre a dependência do sucesso de qualquer lançamento. Não foi à toa que a indústria dos quadrinhos inventou esse tipo de narrativa em grandes sagas, que envolviam todos os seus títulos em produção. De repente você se viu forçado a consumir inclusive os títulos menores, que tinham péssimas vendas, se quisesse saber a história completa. E esse modelo acabou sendo convertido com sucesso para os cinemas. Nos jogos é a mesmíssima coisa, tornando jogos antigos obsoletos para te fazer comprar os mais novos, remakes, sequências, ou simplesmente gerando conteúdo adicional, DLC, pro resto da vida. Por um tempo eu e a Kobold’s Den cogitamos ficar fazendo cenários e conteúdo adicional pra Pulse, como é feito com outros títulos, mas eu não quero ter que fazer isso pra levantar uns trocados. De novo, mesmo se fizesse, também não é um rendimento que faça valer a pena no nosso caso.

Você pode ter percebido por exemplo como grandes indústrias mudaram a forma como vendem seus produtos nos últimos anos, para modelos de assinatura mensal ou micro-transações, onde você tem acesso gratuito ao conteúdo mas pode fazer compras de extras e cosméticos dentro da plataforma. Não se engane: a grande indústria não tomou esta decisão pensando no seu conforto e comodismo, mas sim porque eles fazem mais dinheiro assim. MUITO mais dinheiro assim. O modelo de assinatura implementado por World of Warcraft foi um divisor de águas na indústria de jogos, popularizando esse tipo de capitalização. Ou seja… o modelo de venda unitária, para produtos digitais, é ineficiente por qualquer razão que se possa argumentar, da mais liberal à mais anti-capitalista.

Sejamos mais práticos: a única coisa que eu preciso é que chegue às minhas mãos um dinheiro qualquer que seja suficiente para me manter trabalhando. Se ele veio por venda direta, por assinatura, ou sei lá como, isso é a parte menos importante. Se a pessoa tem os recursos e tem condições de me ajudar a continuar trabalhando, a mim não importa se ela consumiu zero, um, três, ou todos os meus jogos. E não me importa também se a pessoa não tem como pagar pelo meu trabalho, e aí a gente entra no próximo tópico.

Acessibilidade

É importantíssimo lembrar a realidade do meu alcance enquanto um autor independente. Eu não sou um completo desconhecido na cena de desenvolvimento de jogos. Direto descubro que algum desenvolvedor grande aí já jogou algo meu ou assistiu um dos meus vídeos no YouTube, e não canso de me surpreender. Gente… eu não tenho nem mil seguidores no meu Twitter. Meus jogos, mesmo gratuitos, mal mal chegam a mil visualizações mesmo com vários podcasts por aí falando sobre eles, gente divulgando em suas redes, etc.

A realidade é que não tem como um autor independente qualquer disputar com os algoritmos das redes sociais ou até mesmo com a fila de lançamentos da indústria mainstream. Mesmo os projetos que conseguem alguma relevância temporária por um financiamento coletivo de sucesso mal mal duram mais de 48hs na memória dinâmica das redes sociais. E é até difícil descrever a esquisitice de ser sumariamente esquecido de um dia por outro, nos momentos em que a gente acha que tá no topo do mundo, com um projeto bombando. Mas aí sai um novo Call of Duty ou suplemento de D&D, e ninguém lembra. E suas vendas de repente vão a zero. PÁ! Do nada. É uma estupidez acreditar que é possível competir com esse sistema, ou controlar os acessos ao seu produto. Não existe garantia nenhuma, então não existe razão para acreditar nesse sistema como uma plataforma viável. Se eu fosse mesmo depender dessas vendas, é melhor simplesmente não tentar. E é por isso que a maioria dos autores independentes acabam desistindo, mesmo quando possuem talentos incríveis.

Mas o acesso gratuito te permite uma experiência muito diversa. É de graça! Ninguém precisa fazer uma escolha entre o seu jogo e o mainstream que todo mundo precisa jogar senão num faz parte do hype clubista gamer. A pessoa aliás num precisa nem gostar do seu projeto, mas pode dar uma chance só porque tá lá disponível. Você não se apresenta como um competidor no “mercado”. Nesse caso não existe competição.

Infelizmente, e após vários anos experimentando várias coisas diferentes, eu percebi que a linguagem utilizada faz muita diferença na percepção do trabalho. Acredito ter algo a ver com o nosso costume, nossos hábitos de consumo. Quando anuncio que meus jogos estão de graça, que estão sendo distribuídos, por alguma razão existe um entendimento de que esse é um trabalho menor, ou que sequer é um trabalho. “O que é de graça não tem valor”, basicamente. E trabalhar com jogos já tem essa dificuldade, de uma percepção conservadora, ao não ser considerado sequer um trabalho de verdade.

Daí comecei a experimentar o tal “vender de graça”. Percebi duas coisas: primeiramente, mais gente realmente passou a colocar nem que fosse um ou dois reais. Nada que fosse considerável financeiramente falando, mas uma diferença facilmente observável de percepção do valor do trabalho sem ter feito qualquer mudança na plataforma ou no sistema de venda. Só na linguagem do anúncio. E a segunda coisa, por alguma razão mais downloads também começaram a rolar, mesmo de quem não contribui. Isso foi motivo de vários debates com outros criadores, mas a nossa conclusão foi a confirmação de um pensamento de senso comum que tínhamos desde sempre: o público simplesmente entende mais fácil o modelo de venda. Por todos estes motivos, a maioria das pessoas ainda sequer clica pra ver o jogo, mesmo estando de graça, e a simples mudança do anúncio para “venda” aparentemente dá mais segurança para que cliquem e consumam o jogo. Talvez alguma coisa relacionada aos nossos hábitos de consumo, ou um certo preconceito subconsciente a material gratuito. Enfim, não temos provas científica do porquê acontece, mas acontece. Falar em vender, ainda que seja por zero dinheiros, gera mais cliques.

O produto não é o jogo

Essa é a razão mais esquisita pra quem não é da área de jogos, ou não entende um trabalho por ativismo, ou talvez algumas noções de marketing. Mas é, um dia um amigo meu especialista em marketing me entregou de bandeja esse drops de sabedoria: “seu produto não são seus jogos, seu produto é você“.

Pelo que acredito que possa ser percebido no meu texto, muitas das minhas pretensões enquanto autor de jogos nada têm a ver com as possibilidades alcançadas por um ou outro jogo, mas sim uma transformação da indústria, e da comunidade de desenvolvedores de jogos. Eu acho legal que você tenha curtido o PULSE ou o Contos do Galeão, mas eu vou realmente ficar satisfeito se, de alguma forma, você entender e se inspirar pela forma como levo o meu trabalho. Se você entende que temos mesmo vários problemas estruturais na nossa sociedade, nos nossos hábitos de consumo, no nosso esforço de trabalho, no nosso entretenimento, e só então as preocupações sobre como se organiza a indústria de jogos, como fazemos jogos, como consumimos jogos… e se mesmo entendendo todas as dificuldades você ainda tope escrever e desenvolver seus próprios jogos, seguindo uma filosofia razoavelmente baseada na minha… isso sim é o objetivo final do meu trabalho.

Na verdade o maior valor do que eu faço tá embutido nesse discurso, e não no potencial comercial dos jogos. Na verdade, repetindo o argumento anterior, os jogos têm que poder ser um lixo. Então o que deve ser capitalizado é qualquer outra coisa, e não os jogos.

Mas como capitalizar algo que é fundamentalmente anti-capitalista? Essa é uma crítica que sempre tive a vários projetos incríveis de “transformação social”, mas que cobram uma fortuna a quem quiser participar. Pô, quer mudar o mundo mas só tá liberado pra quem puder pagar? Esse direito de exclusividade e restrição de recursos é, em si, o maior problema a ser combatido, então num existe lógica nessa capitalização doida.

Existe um livro chamado A Arte de Pedir, da Amanda Palmer, que foi uma das obras mais importantes na forma como trato este tópico. E somado à leitura desse livro, tive algumas experiências em estruturas colaborativas e de economia criativa, que me provaram como não é uma ideia tão absurda assim dialogar diretamente com quem pode te ajudar, que valoriza o seu trabalho e está disposto a te financiar. E não em troca de um produto, de um serviço. Em troca da minha existência na cena de desenvolvimento.

E querer controlar quanto vale esse comprometimento de cada um é uma bobagem. Cada um sabe muito bem quanto dinheiro tem, quanto pode gastar, quanto quer gastar, e como quer fazer isso. Você quer comprar jogo por jogo, do jeito que tá acostumado? Eu coloco uma sugestão de preço em cada um. Quer só me dar dinheiro aleatoriamente? Você pode comprar dezenas, centenas de vezes cada um dos meus jogos sem ficar atolado de mercadoria na sua casa. Quer me ajudar mensalmente, tipo modelo de assinatura? Tem o financiamento coletivo recorrente no Catarse também. E sempre que houver mais formas de capitalização que não interfiram com a liberdade do trabalho, vou sempre tentar deixar disponível.

Eu entendo qualquer transferência de dinheiro para mim como presentes, e não uma relação de clientela. Você não é meu cliente. Você não é meu patrão. Eu não sou seu funcionário. Eu não tenho central de atendimento pra te tratar como mega corporação. Eu tenho uma proposta, que você também pode aceitar como um presente. De graça, a troco de nada. Algo que eu fiz para você e para quem mais quiser curtir. E fiz também para quem odeia a mim, meu trabalho, e tudo o que eu represento. Olha que loucura: até quem odeia meu trabalho pode consumir o que eu faço sem qualquer vínculo à minha pessoa. Então eu aceito a sua contribuição, se você quiser, se você puder, da forma que for melhor pra você.